-Tens noção de que nunca conheci ninguém como tu...?
-Tenho. E provavelmente não irás conhecer muitas mais.
-Pois não.
-No outro dia estive a dançar esta música no quarto, de boxers e phones nos ouvidos.
-Não posso. Tu?
-Sim, porquê?
-Ahah.
-Às vezes devem pensar que eu sou um extraterrestre, diferente das outras pessoas...
Estas conversas passaram-se entre mim e uma pessoa que me admira. Não me me admira pela positiva nem pela negativa, simplesmente acha-me estranho, diferente do que está habituada. No dia-a-dia tento sempre mostrar uma faceta própria, distinguir-me, transmitir o lado de mim que gostava que as pessoas se lembrassem quando tivessem que me caracterizar. Muitas vezes deixo-me levar, e mais tarde percebo que não consigo fazer passar bem o que sou. Oiço injustamente que sou frio, arrogante, competitivo, convencido. Respondo levianamente que não me importa o que dizem, mas é mentira.
Independentemente disso, e independentemente do que dizem, eu acho-me realmente diferente. Sobretudo na maneira de pensar, já devem saber. No entanto, existem factos que persistem em relembrar-me à força que não sou diferente, sou igual. Quando o sofrimento me afecta tal como afecta toda a gente, quer tenham pensamentos filosóficos ou não, ou quer tenham uma moral que tentem respeitar ou não, eu percebo que sou tão vulnerável a ele como qualquer outra pessoa.
E ultimamente tenho sentido isso mesmo. Como os meus sonhos cresceram, a vida encarregou-se de me faze-los tentar esquecer também, de uma forma subtil, e com um toque de crueldade que só ela sabe dar. Ela, a crueldade, tem vindo de todo o lado, e eu já não estava habituado a ela.
No entanto, como gajo frio que sou, tenho de continuar a ir para as aulas de história mandar bocas à professora de história, como se tudo o resto me fosse indiferente, e tivesse uma vida normal como toda a gente, para que a V. não consiga decifrar nos meus olhos nada além de um gajo diferente dos outros, com mau feitio.
As unicas alturas em que gosto de partilhar de livre vontade é quando não gosto das coisas. Aí, aproveito para fazer boa figura. Sou um pouco interesseiro, mas nada que afecte a minha autoconfiança, pois sei que muito bem quando devo optar por ceder. Controlador nato, gosto de convívio, embora o facto de ser tudo ao molho já me incomode bastante. Sei fazer as minhas jogadas para ser sempre a que pessoa que reparte, para ficar com a melhor parte, não fosse eu cheio de arte.
(Não fui eu que disse, foi o resultado do teste do i.)
Hoje enquanto o autocarro me levava para casa, o escuro da noite não me impediu de concentrar a minha atenção nas vistosas moradias que preenchem a paisagem da viagem. São daquelas moradias grandes, construídas naquela altura em que os portugueses pensavam que eram ricos. À excepção de duas ou três, habitadas por advogados, praticamente todas as outras me pareceram estar vazias. Questionei-me acerca da utilidade de ter casas tão grandes, e acerca do conforto de viver nelas. Depois lá veio a tal pergunta "E se toda a gente no mundo pudesse viver assim? Era possível? O planeta aguentava?". Não aguentaria certamente. E se toda a gente quisesse viver como eu?
No outro dia estava já deitado na cama, a ouvir música pelo mp3, e com um saco de água quente a aquecer-me os pés. Tal como um velho, como alguém me relembrou.
Normalmente deito-me já tarde, e cheio de sono. Mas naquele momento estava ali deitado na cama, sem muita pressa de adormecer, e como tinha que esperar pela mensagem diária a dizer "boa noite, até amanhã", a que eu responderia com algo simpático e com um smile no fim, fiquei livre para pensar em qualquer coisa.
Ao ínicio, e ao mexer os pés, lembrei-me daquela vez em que estava deitado com a minha tia e algo me fez acreditar que os meus pés tinham tocado no fim da cama. Parecia mesmo que as minhas pernas já eram tão compridas como eu desejava.
Pouco depois lembrei-me das vezes em que eu estava deitado na cama com a minha mãe, e sabendo que ela não gostava, insistia em «mergulhar» nos lençóis e explorar tudo o que havia lá em baixo. A minha imaginação levava-me a pensar que estava noutro sítio, e aquela mistura de sensações entre o perigo do escuro e a segurança de ter a minha mãe por perto chegava para me divertir.
Mas agora já não me deito com a minha mãe nem com a minha tia, e estava por minha conta. A minha imaginação podia levar-me onde quisesse, mas tinha que levar sozinho com as consequências.
Decidi não pensar em muitas coisas, apenas recordei etapas da minha própria vida, coisas que já senti, pensei, e vi... Explorei o conforto que estava a sentir dentro daquela cama, e em vez de cobiçar uma vida melhor, apercebi-me da imensidão de pessoas que desejariam estar onde eu estava e ter uma vida como a minha. Afinal, enquanto eu passo o tempo com lamentações, haverá muita gente a querer viver como eu.
-Porquê que tu és assim?
-Não sei, sou diferente...
-Tu não és diferente! Tu queres ser mas não és, és igual a todos os outros!
O diálogo de hoje não se relaciona muito com o que vou escrever, mas mesmo assim quis partilhá-lo aqui devido à violência que estas palavras têm em mim. Afecta-me muito mais ser conotado como igual aos outros, do ser visto como diferente. Se calhar este facto prova que a diferença assenta mais em mim como um desejo, do que como uma realidade.
Não sei se sou igual ou não. Sei que tive um crescimento diferente e que não me sinto, nem quero ser, igual à maioria dos jovens da minha idade. Um sentimento que algumas pessoas pensam ser egocentrismo. Devido a ter crescido sozinho, aprendi a conhecer-me melhor, a fazer perguntas e a gostar de mim próprio. Apenas isso. Perguntas que uns fazem mais, outros fazem menos, e que alguns nem fazem.
Ultimamente as minhas perguntas voltaram-se novamente para aquilo que existe depois da vida, tal como a conhecemos. O meu afastamento da religião, e o facto da morte ter circundado a minha família recentemente estão na base destas dúvidas.
Tal como as crianças ficam a sonhar com um filme de terror, também eu fiquei assustado depois de ter visto uma urna reaberta com o cadáver coberto de larvas, no filme do Sherlock Holmes. Pronto, o cenário não é o mais agradável, mas depois de ultrapassada essa parte vieram as interrogações acerca do melhor destino a dar aos mortos. Seguiram-se as obvias dúvidas acerca daquilo que existirá ou não após a vida. Para algumas pessoas deverá parecer estranho, mas devo também dizer que um dos pensamentos que mais me passa pela cabeça é precisamente imaginar o meu funeral, se fosse hoje.
Após tudo isto, recordo-me do meu dia de aniversário quando um carro não abrandou, comigo no meio da passadeira. Hoje, depois de pensar em acidentes e atentados no metro, caminhava ao longo do passeio e apercebi-me da pouca distância que me separava do autocarro que seguia a grande velocidade mesmo a meu lado, pronto a levar qualquer coisa à frente. Percebi que apesar da morte ter uma data de encontro marcada connosco, está sempre lá, à espera que demos um passo em falso.
Hoje despedi-me da pessoa de quem mais gosto com a sensação de que era a ultima vez que a via. Apetece-me respirar fundo.
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