Tive moral até ao 9º Ano. No 5º e 6º anos, dados pela professora Regina, lembro-me de ir para a rua pela primeira e única vez (numa falta colectiva), e de um célebre episódio de colegas meus a mandarem bolas de papel pelo ar (na sala às escuras, enquanto era passado um filme), frente ao nariz da professora, e de esta fingir que não via nada. Achei de tal modo piada àquilo que nunca mais que esqueci. Nessa altura, todos tinham moral, mesmo os não católicos.
No 7º já não era bem assim, já era uma vergonha ser religioso, e por isso os que tinham moral começaram a ficar com esse rótulo. Nesse ano a professora mudou, chamava-se Catarina se não engano, acreditava no inferno, e na realidade, pouco mais sabia dar do que catequese. Ficava assustada quando se apercebia das manhas dos miúdos, estava habituada a miúdos um pouco mais inocentes, e desejou rapidamente ir embora. Foi de facto, no ano seguinte, felizmente.
No 8º chegou um homem que tinha trocado a advocacia para ensinar moral aos mesmos miúdos que tinham levado ao desespero as professoras anteriores. Impressionou-me logo desde o início... Que tipo de pessoa era aquela de olhos azuis, que andava no meio da vigarice que eu pensava que era o mundo dos advogados e dos tribunais, que dizia ter sido muito bonito e cobiçado quando era novo, e a quem a vida lhe corria bem ao nível financeiro e familiar; para trocar toda aquela carreira e estabilidade para fazer diariamente 50km apenas com a esperança de ajudar alguns miúdos a tornarem-se pessoas melhores?
Ou era parvo ou ingénuo. Hoje custa-me atribui-lhe estes adjectivos, mas altura pensei que fosse uma mistura dos dois, facto que me levou logo a presumir que não devia ter sido um bom advogado. A advocacia não combina bem com bondade, ingenuidade e esperança. Com o tempo, deixei de o achar parvo, mas ainda hoje considero que deve ser um homem ingénuo, com esperança a mais, com bondade a mais. Fui percebendo isto mesmo ao longo do 8º e do 9º. Infelizmente as aulas não eram assim tão boas, por culpa dos meus colegas, alguns ainda obrigados a ter moral, outros sem nenhuma vontade de se tornarem pessoas melhores. Apesar disso, a vida daquele homem (de quem neste momento não me consigo recordar o nome sinceramente), marcou-me muito. Gostava, para bem dele próprio, que não fosse tão bom. Estou convencido que não podemos ser completamente bons em tudo o que fazemos, a vida não nos permite isso, com tanta gente má que existe à nossa volta. Não temos de nos tornar maus, apenas agir de maneira mais cautelosa, por vezes não podemos ser bons, e para isso não temos necessariamente que nos tornar maus.
Gostava de o ouvir. Lembro-me da história da cebola, uma metáfora que ele usou para nos explicar os diferentes níveis de confiança que estabelecemos nos diferentes níveis de relações que temos com as pessoas. Dizía-nos que existe um núcleo central onde nunca ninguém consegue entrar, e é bem verdade. Também me lembro das explicações químicas para justificar a paixão, nos exemplos pessoais da vida dele que nos dava para comprovar o que nos ensinava, entre outras coisas...
Apesar de tudo isto e de gostar muito do que ele nos dizia, nos últimos tempos do 9º era impossível desligar-me do ambiente que se vivia na sala, desligar-me da maneira como alguns alunos humilhavam outros (humilhação onde eu por vezes entrei, confesso, infelizmente), e o professor de tão benevolente que era não conseguia controlar a situação.
No 10º e 11º não me recordo se me inscrevi em moral, num deles penso que não. De qualquer forma, não abriu turma, mesmo quando num ano havia alunos suficientes. Ao longo destes anos fui tendo algumas conversas com o professor. Quando comecei a deixar de conseguir esconder o meu mal-estar, foi ele que me ouviu, e foi ele que me emprestou o filme que até hoje mais gostei - Os Educadores.
Ontem, quando nas matrículas me perguntaram se queria moral, fiquei sem saber o que responder, não me tinha lembrado. Sinceramente não me apetece voltar a ter aquelas aulas em que, para além de ouvir o professor, só me resta interagir com ele, porque mais ninguém dos meus colegas o faz decentemente. Gostava mais de ir falando com ele pessoalmente de vez em quando, do que estar semanalmente metido numa sala com aquelas pessoas. No entanto, sei a vontade que o professor tem em poder abrir pela primeira vez na minha escola uma turma de moral no secundário, e sei o gosto que ele teria em que eu estivesse nessa turma. Por isso, por ele, e não por mim, inscrevi-me em EMRC.
Sobre a minha secretária, e ao lado da melhor fotografia que tirei até hoje colada por um pega-monstros, tenho agora uma fita verde que o professor mandou entregar a quem escolhesse a disciplina - EMRC, Eu quero!.